O meu Blog

O Blog "Verba Volant, Scripta Manent" foi criado no âmbito de um exercício académico. Desde então, e por forma a dar alguma continuidade à experiência iniciada na blogosfera, mantém o objectivo de partilhar alguns textos pessoais, bem como outros materiais literários do nosso interesse.

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sábado, 26 de setembro de 2015

VOA, MARIA, VOA!
(Pequeno comentário - reflexão sobre a peça de teatro "António e Maria" com Maria Rueff, no Teatro Meridional)

As palavras serão redutoras para descrever “António e Maria". Além de redutoras, não sei bem escolher aquelas que poderão iniciar esta pequena reflexão pós-espectáculo.
Algumas pessoas já se riem comigo por andar com um bloquinho de notas quando vou ao teatro e escrevo às escuras, entre uma fala e outra. É a forma de eternizar aquilo que ouço e de criar um sentido que em mim fica, quando volto a ler aquelas palavras todas tortas, mas ainda perceptíveis.

"Não me digam nada que até às 11 da manhã tenho um humor de cão", "Não me digam nada, é que não me digam nada", diz a mulher nos primeiros minutos, dentro de um sobretudo cinzento-pesado, por cima de uma roupa de andar por casa, botas de montanha, cabelo ainda não desgrenhado. Uma única mulher, um monólogo que dialoga com Outros: um António com uma boca especial, uma mãe que grita ao telefone que até dá medo de prosseguir o suicídio, um pai corno-austero, o tio que se roça na mãe, um Sr. Biscaia que a ampara financeiramente, mas não sexualmente por frequentes "desmaios" viris, uma mulher velha que exige ao marido que não lhe morra no café ("Não morras agora, porque estão a olhar para nós e é uma vergonha")...
Mas voltemos à mulher grave, a qualquer um dos leitores de António Lobo Antunes, a qualquer espectador que se sinta pesado na sua cadeira. Envolta na sua solidão de memórias vivas e muitas vezes perturbadoras, inicia uma viagem interior aos medos, ao abandono, ao desamor, à infância e aos pequenos sonhos que ousou sonhar. Entre a quase loucura de uma mulher só e o desejo implícito de encontrar um rumo, uma vida ou um porto de abrigo, a actriz conduz-nos eximiamente numa reflexão íntima e intimista sobre religião ("Onde está Deus que não o vejo?", "O nosso mal foi ter nascido na velhice de Deus", "Mas quem é Deus que não está?"), sobre a solidão, sobre a família, sobre a inexorabilidade do tempo ("Velhas zangadas com o tempo, como eu", "Tantas rugas, Celina, tantas rugas", "Que ridículo aborrecer-me com as rugas, com a velhice"). No fundo, é uma reflexão universal sobre a vida, as emoções, a condição humana na sua plenitude ou no seu vazio, porque afinal "A vida é uma pilha de pratos a caírem no chão". A mulher solitária exibe cada caco desses pratos partidos e mostra-nos a fragilidade que nos define, homens e mulheres; o limiar entre a sanidade e a loucura, entre a estreiteza de quatro paredes onde podemos envelhecer "a mudar o canal e a ouvir crescer o pêlo da alcatifa" e o leque de possibilidades que o devir nos pode trazer. É, aliás, com esta nota de esperança que termina o espectáculo: "Alguma coisa há-de acontecer até amanhã de manhã". Ou a simples e insistente repetição textual da mulher que recorda a menina que foi: "Voa, Celina, voa!".

A bem da verdade, esta mulher polifónica pode ser o António, pode ser a Maria, posso ser eu ou pode ser qualquer um de nós, refractados a partir daquela mulher que se desmultiplica nos diversos espelhos instalados no cenário.

Neste espectáculo, Maria Rueff atinge um nível de perfeição tal que nos deixa estonteados, rendidos à irrepreensibilidade dos seus gestos ou dos múltiplos tons da sua voz. A sensação inicial é de leveza, todavia, conforme o espectáculo vai decorrendo, o nosso peso vai-se engastando na cadeira (e sentimo-nos cada vez mais e mais pesados) de tal forma que se torna quase insustentável estar ali. A actriz impregna-se na pele e vai-nos beliscando, paulatinamente, até à exaustão, até termos vontade de fechar os olhos e gritar: Pára de falar de mim, da vizinha, da irmã ou da prima! Porque é que tens de dizer tudo o que pensamos e não dizemos a toda a gente?
É o grito de um de nós, o eco de dentro da solidão e do estigma, uma viagem psicológica ao espelho da alma e a desconstrução do Homem, a partir desses fantasmas que se agigantam na velhice e sulcam escrupulosamente vincos na expressão.
Usando uma metáfora meio idiota, o espectáculo transmite-nos aquela sensação da "Bailarina" (típico "carrocel" da Feira Popular lisbonense): acabamos a viagem maldispostos de tantos solavancos e de tanto rodopiar, com a impressão de vertigem eminente, a "cair para dentro de nós", como diria Walter Hugo Mãe (O filho de mil homens). Exaustos da viagem e da procura incessante da mulher (de nós!), mas intensos e completos no sentir.
"António e Maria" é tão simplesmente um espectáculo irrepreensível, uma experiência do sublime, tanto pela organização e adaptação dos textos de Lobo Antunes, feitas por Rui Cardoso Martins, como pela encenação do Miguel Seabra, pela cenografia aparentemente simples; mas também, claro está, pela brilhante-estonteante interpretação de Maria Rueff que nos mostra que é uma actriz absolutamente completa, um caleidoscópio com milhares de possibilidades, que não se resume àquele lado cómico que todos nós conhecemos.
Um espectáculo que vale a pena ver e sentir.
Um diálogo interior que vale a pena desvelar e deixar falar.
Vale a pena "espreitar para dentro da bota porque às vezes há coisas" (António Lobo Antunes citado no flyer do espectáculo). E é bom quando espreitamos e ficamos surpresos, atónitos, sem palavras, soterrados numa cadeira, apenas com os olhos e com os ouvidos acordados. E há tantas surpresas dentro de um par de botas de montanha…

Muitos parabéns, Teatro Meridional!
Muitos parabéns, Maria Rueff!

Manuel Pereira Vieira
(Troyka Manuel)

Publicado no Facebook: https://www.facebook.com/troika.manuel/posts/933265856761670